Atualmente é cada vez maior o marketing em favor dos aparelhos que prometem medir seu esforço e desempenho, sejam eles monitores de frequência cardíaca, de velocidade, distância ou potência. Essa propaganda, muitas vezes, nos leva a crer que essa é a chave do sucesso para melhores treinos e consequentemente melhores resultados nas provas. Daí surge um grande embate entre os cartesianos, que defendem com unhas e dentes o treinamento através dos números, e os mais holísticos, que pregam o desapego à essas questões cientificistas e buscam focar o treinamento apenas nos parâmetros subjetivos. Mas qual dessas correntes realmente é a melhor para mensurarmos nossos esforços durante treinos e competições?
Os números são uma forma didática criada para modular tendências através de um volume imenso de dados estatísticos, que claro, são válidos, mas o treinamento desportivo é uma ciência humana e não uma ciência exata, portanto temos diversas questões que acabam não entrando nas equações pelo simples fato da impossibilidade de serem medidas, sendo assim, para se alcançar o diferencial quando você quer passar para o próximo nível, é necessário o conhecimento do seu próprio corpo e como você consegue lidar com as adversidades que surgem tanto ao longo do processo de treinamento quanto nas competições.
Como exemplo podemos citar os testes feitos para encontrarmos os limiares, que nos mostram apenas indícios de onde esses limiares estão, já que esses valores são muito voláteis e mudam constantemente, principalmente os limiares de performance, como pace e FTP. Na RT Performance, dificilmente fazemos testes e procuramos estimar os limiares através da análise de dados, colhidos preferencialmente em condições de prova.
Outro ponto que é muito utilizado quando trabalhamos com os números, são as zonas de treinamento, porém existem vários protocolos diferentes e cada um possui um número diferente de zonas. Existem protocolos que usam 10 zonas, uns que usam 7, outros 5 e até os que usam apenas 3; o que nos traz a certeza de que a realidade está nas sensações, o que é mais concreto é o sentir. Os números irão apenas ajudar a nortear nosso caminho e nos fazer perceber como nos relacionamos com nossas sensações e as encaixamos dentro dessas zonas, mas isso tudo sempre dentro de uma base regular e consistente de treinos e provas. Não existem o protocolo perfeito, apenas aquele ao qual você se adapta melhor.
Vamos tomar como exemplo a natação: esse é um esporte que evoluiu muito nos últimos anos e não vemos nenhum nadador olhando para um monitor seja de frequência cardíaca, de velocidade ou de potência em baixo d’água, vemos? Eles “trabalham” apenas com a sensação do esforço e procuram diferenciar o que é fácil, moderado ou forte para saber se estão indo rápido ou não. É muito difícil calcularmos com precisão o IF (fator de intensidade) e consequentemente o TSS (taxa de estresse) em um treino de natação, até em função do uso de equipamentos como palmar, pullboy, pé de pato, entre outros. Portanto, esses cálculos sempre serão estimados e cabe ao treinador conhecer muito bem seu atleta para ajustar a carga de treinamento e faze-lo progredir.
No ciclismo e na corrida esses números já nos trazem informações mais próximas da realidade pela forma como conseguem ser medidos, mas é extremamente importante que você, ao longo de sua construção como atleta, aprenda com os números à entender suas sensações.
Para ilustrar melhor, vou contar uma experiência que tive em 2007, no Ironman Brasil: tinha feito toda minha preparação baseada na frequência cardíaca. Ao sair da água e pegar a bike na T1, percebi que meu frequencímetro não estava funcionando (após a prova verifiquei que a bateria tinha acabado), então teria que lidar com o estresse de não saber como meu coração estava se comportando ao longo do percurso! Resolvi tentar me direcionar pela sensação do esforço, lembrando de como me sentia durante os meus melhores treinos. Tive medo de estar colocando tudo a perder, já que não tinha muita vivência com esse tipo de abordagem, mas naquele momento não havia muitas alternativas.
O ditado: “Há males que vem para o bem!” se aplicou nesse caso e tive a oportunidade de notar como podemos melhorar e evoluir quando escutamos nosso corpo e obedecemos aos sinais dados por ele. Meu melhor tempo para os 180km de ciclismo no Ironman Brasil até então era de 5h e 50 minutos e nesse dia conclui essa etapa em 5h e 15 minutos e de quebra fiz minha melhor maratona de Ironman, o que me resultou em meu recorde pessoal na prova brasileira, até aquele momento.
Quando ficamos “presos” aos números, muitas vezes subestimamos ou superestimamos nossos treinos,
prejudicando em longo prazo nossa evolução. Digamos que em condições normais, correr a 5 min/km te traz uma sensação de esforço moderado (Z2), mas se você estiver mais cansado que o normal, pode ser que se torne difícil correr esse mesmo quilômetro em 5 minutos e se você obedecer essa prescrição, estará trabalhando em uma sensação acima da programada (passando para Z3 ou até Z4). Perceba a diferença, quando treinamos baseados na sensação do esforço: independente de estarmos cansados ou não correr 5 minutos de forma moderada, será sempre correr 5 minutos com intensidade moderada (você estará sempre na intensidade estipulada, no caso Z2), mesmo que a distância para este estímulo seja diferente de uma semana para a outra. Da mesma forma, se pedalar com uma potência de 280 watts por 2 minutos for um esforço grande (Z5), talvez em um dia em que você esteja mais motivado e descansado que o habitual você consiga fazer os mesmos 2 minutos fortes entregando 290 watts de potência, indo além do que os números preconizavam para aquela sessão podendo colher frutos positivos.
Um outro fator que deve ser avaliado ao mensurar o esforço é a questão psicológica de cada atleta. Existem atletas que são muito propensos à perda de concentração e motivação quando não conseguem alcançar os números que são estipulados e esse comportamento acaba se refletindo nas provas. Quando o atleta trabalha em cima da percepção e não foca nos dados, ele não se deixa influenciar negativamente em um dia que as coisas não estão indo bem e acaba por cumprir a sessão da melhor forma possível.
Percebeu como basear os treinos em números pode nos limitar? Nosso corpo nem sempre reage da mesma forma aos estímulos dados, pois muitos fatores influenciam nosso rendimento como noites mal dormidas, má alimentação, hidratação, calor, umidade, estresse no trabalho, problemas de família, relações amorosas, dificuldades financeira, entre outras… Mas isso não significa que você não deva coletar os dados e arquivá-los para que possam ser analisados. E quanto mais dados você puder colher melhor, pois é exatamente com o cruzamento de todos esses dados que conseguimos, através da experiência, entender as sensações e reações do nosso corpo.
Na edição de 2014 do Campeonato Mundial de Ironman, no Havaí, tivemos mais uma prova de que os aparelhos de medição não são o fator determinante para melhorar a performance. O alemão Sebastian Kienle fez toda a prova sem relógio e sem medidor de potência na bike! Seu autoconhecimento lhe guiou durante toda a prova, que foi uma das mais duras dos últimos 10 anos, para que ele conquistasse o tão sonhado título. A suíça Daniela Ryf é outra atleta que já conquistou a coroa havaiana por 4 vezes e em nenhuma dessas oportunidades usou monitores de controle da intensidade. Mas certamente esses atletas, analisaram durante anos, seus dados, ajustaram seus treinos e refinaram suas estratégias de prova até que fossem capazes de “enxergar sem olhar"!
Portanto, experimente deixar o monitor de frequência cardíaca, GPS ou o powemeter de sua bike no bolso quando for sair para treinar durante algumas semanas, liberte-se, sinta seu corpo e o prazer de executar cada sessão de treino sem a obrigação de bater determinados números. Ao voltar para casa, escreva suas percepções sobre o treino, depois olhe seus dados e veja os resultados, dessa forma você vai se conhecendo melhor e entendendo como usar os números a seu favor, sem se tornar escravo deles.
Desfrute do seu treinamento!